O curioso caso de não saber nada e continuar curioso.
Como os grandes artistas não possuiam um podcast para falar sobre todos os significados de suas obras, só nos sobra adivinhar, especular e fofocar entre nós.
Olá a todos e bem-vindos de volta ao Stroke of Genius!
Para o conteúdo de hoje, vamos tratar de arte um pouco mais recente, do século XIX.
O conteúdo acima, originalmente intitulado em alemão “Der lästige Kavalier” - O cavalheiro irritante, pelo pintor alemão Berthold Woltze, conta uma história incômoda, como muitas das obras do autor.
Woltze tem uma biografia curta, e é definitivamente um dos artistas mais subestimados da época.
Nascido em Havelberg, uma cidadezinha no meio de uma ilha no meio de um rio no meio da Alemanha, era um professor na escola de artes Weimar Saxon Grand Ducal. Pintava paisagens, retratos e, minha parte favorita, “Problem pictures”.
Problem Pictures, como o nome já diz, “Imagens-problema”, é um gênero de arte Victoriana (isso é, Britânico e mais ou menos entre 1830 e 1900), muito popular por suas representações ambíguas de momentos chave em uma narrativa, que podem ser interpretados de diversas maneiras e que convida você 🫵, o espectador, a dar seus próprios pitacos.
O problema não pode ser resolvido (isso é, porque é apenas uma pintura e você não tem esse tipo de poder nas mãos…) então causa essa sensação terrível de estar assistindo e não poder fazer nada a respeito. Obviamente, está alinhadíssimo com o humor britânico e se tornou super-popular.
Mas esse estilo só viria a aparecer um pouquinho mais pra frente, depois de 1850, e na Inglaterra. Então, podemos dizer que Berthold Woltze estava à frente de seu tempo, e uns 900km demais “pra direita”…
Um exemplo bacana desse estilo é a pintura “Confie em mim”, de John Everett Millais:
Vemos um senhor mais velho, demandando que a moça mais jovem lhe entregue as cartas. Perceba que ambos podem ser quem diz o título da obra '“confie em mim”, dependendo do ponto de vista.
Qual o conteúdo das cartas? Quem está mentindo? Qual o segredo que estamos observando? Quem deve confiar em quem? Qual a relação dessas duas pessoas?
Pra mim, o prazer esta na deliciosa sensação de estar tão próximo dessas pessoas, vivenciando um problema pessoal junto com eles como se fóssemos uma visita - na casa de uma família estranha que não se importa em brigar na frente da visita… Mas ao mesmo tempo, sabemos tão pouco e somos deixados aos artifícios da nossa própria imaginação para resolver o mistério.
Outro exemplo brilhante da época é a pintura "E quando foi a última vez que você viu seu pai?"
Nessa obra, por William Frederick Yeames, acompanhamos um menino sendo interrogado por tropas que estavam buscando por seu pai. Que situação desconfortável, já que somos adultos e sabemos que a pergunta feita foi, com certeza, capciosa, e tinha o único intuito de enganar o menino e incentivá-lo à entregar a seu próprio pai.
Foi baseando-se nesse sentimento agridoce que nosso artista do dia, Berthold Woltze, se apoiou para criar obras tão incômodas - mas impossíveis de não encarar.
Antes de mergulharmos de cabeça na obra proposta para o assunto de hoje, vou providenciar mais um exemplo, dessa vez do mesmo autor:
Na pintura “As Cartas”, a sensação de impotência é ainda mais forte. Uma mãe, jovem, para de descascar batatas às pressas e lê uma carta assim que a recebe. O choque ao ler o conteúdo a derruba contra a parede, já sem energias. Sua filha pequena a olha direto nos olhos e a segura pelo braço, parecendo não entender da situação.
Quem mandou as notícias? O marido? É morte, doença ou traição? É a fatura do cartão de crédito? O jantar será batatas aos murros ou purê? Jamais saberemos, porque Woltze nunca contou. E por que essa é a graça.
Agora, sem mais delongas, voltando à obra que prometi te contar sobre e até agora não contei nada:
Vemos uma jovem. Ela é o centro da obra e o ponto de maior atenção, uma vez que ela quebra a quarta parede. Antes mesmo de poder entender o contexto da obra e do que pode estar acontecendo, seu olhar é puxado para o dela, que te encara no fundo da alma e parece dizer “socorro”, em silêncio.
O cabelo solto provavelmente significa que ela ainda não é casada, e consequentemente é considerada uma criança pela sociedade.
Suas vestes negras nos levam a pensar que ela está voltando ou indo à um velório. Ela está de luto, e parece muito desconfortável, ainda com o lencinho usado para chorar no colo.
Note que em sua mão direita, repousada sobre o chapéu, parece haver algum movimento. Pode ser que ela esteja segurando um alfinete de chapéu, agulha grossa e bem longa, popularmente utilizado por mulheres do século 19 para autodefesa.
Ela carrega uma bolsa grande. Será que está de mudança? A pintura temática de flores demonstram e representam sua inocência de criança.
Um homem se debruça sobre ela, invadindo seu espaço pessoal e desrespeitando seu luto. Ele fuma seu charuto e derruba cinzas sobre sua bolsinha, e empesteia o ar de fumaça. Como é possível uma pintura me mostrar que um homem tem bafo?
Ele parece irritante, e parece estar querendo tirar proveito da menina, claramente abalada, ingênua e em uma situação de vulnerabilidade.
Quem era ele? O que queria? Eles se conhecem? Quem morreu? Que fim deu a fofoca? Dos diversos mistérios que vemos na pintura, a única certeza que temos é que essa menina não queria estar aí, e que esse cara - assim como nos é contato no título da obra - é um chato!
Por fim, gostaria de chamar atenção para um último pequeno detalhe - a assinatura do artista, pequena e discreta, disfarçada em uma caixa. Gênio!
Obras assim nos aproximam da história como nenhuma outra. É incrível (e nesse caso, triste) ver como somos parecidos com os humanos que viveram em tempos tão diferentes dos nossos.
Os anos passam, mas a humanidade segue muito, muito mas MUITO parecida. Vivenciamos os mesmos problemas, amamos e odiamos da mesma forma e sentimos a mesma gama de sentimentos. Medo, pavor, paixão, ódio, tristeza, alegria, orgulho, vergonha…
Como é bom ser humano!
Como é bom, às vezes, não ter as respostas para alguns mistérios e poder especular sobre eles, nas horas vagas (e no meu caso, no horário comercial).
Como é bom encontrar um estilo de arte que é completamente relativo, e eu posso simplesmente jogar minhas teorias aqui como se fossem verdades absolutas. hehe